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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Um like para um cadáver



Parou em frente à banca e viu um livro em destaque. Os olhos passaram rapidamente pelo título no mesmo instante em que seu coração deu um pulo dentro do peito: ”Dora, a insatisfeita”.

Olhou a prateleira ao lado. “Dora, a insatisfeita”. E outros livros amontoados ao chão: “Dora, a insatisfeita”. De repente todos os livros da banca tinha o mesmo título. Todas as revistas traziam a mesma manchete na capa: “Dora...” Dora... a ...”

- AAAAhhhhhh!!!!, gritou no meio da livraria com as mãos na cabeça.

Olhou em volta e por alguns segundos todos a sua volta estavam parados, olhos fixos em sua loucura.

O pior de tudo não era não sentir nada, não era continuar infeliz, nem seu adorado roupão branco estar sujo de sangue em casa. Não, isso não era o pior. Não estava cheia de uma ressaca moral pela morte. O que a deixava nervosa e impaciente era não ter o que fazer com o corpo inchado de Jairo. "Consequências", pensou imitando a voz de Pablo em um plano que só ela conseguia ouvir. "Consequências, queridinha!"

Irritada com aquela confusão se pôs a andar depressa, de volta pra casa comprada antes dos 30, e que nunca mais seria a mesma.

Abriu a porta do apartamento. Não foi até o quarto, mas pela porta aberta viu a perna direita de Jairo, torta, como se ele fosse um boneco de pano. Deixou as sacolas no balcão que separava a cozinha da sala. Abriu o notebook. “Dora, a insatisfeita”?. Não. Não mais. Naquele momento seu único desejo era escrever. Escrever qualquer coisa que fosse, qualquer coisa que a levasse para longe dali. “Dora, a insatisfeita”, repetia pra si mesma visivelmente incomodada.

- Insatisfeita ficava sua mãe!, gargalhou em voz nervosa, sozinha, enquanto tentava escrever palavras ao léu.

Quem, do outro lado da tela, quem nas redes sociais que ela fazia questão de movimentar todos os dias poderia imaginar que ali mesmo, ao lado da tela do computador, na mesinha cheia de história de sua avó, repousava a arma do crime. Enquanto ela... Ela escrevia posts cheios de si mesma para os infelizes como ela.
Assassina? Eu? Assassinos tiram vida de algo cheio de vida... Jairo não era nada!
- Insatisfeita?, disse novamente em voz alta, rindo para si mesma, rindo de alguém que ela não sabai exatamente quem era. Rindo de como nem ela mesma soubesse do que seu riso fosse feito.
Toda tarde, durante aquelas tardes intermináveis que passara ao lado de Jairo, ele jogava aquela vida cheia de nada, aquela vidinha farta de drama em sua cara. A mesma que há tão pouco ainda era jovem.

Sem saber, ou pensar muito. Sem saber nem sentir muito, Dora transformou aquele dia, o sentimento todo, aquilo tudo que não cabia dentro do peito em um post.
Fez-se ainda mais satisfeita, afinal a vida era isso: satisfações momentâneas que mereciam um like no Facebook. Naquela manhã, apesar da noite anterior e do sangue que insistia em manchar o piso do quarto, ali dentro daquela vida online, Dora se fazia vencedora. E seu pesar maior era não poder postar as fotos de seu quarto como prova disso.  

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Capítulo 10: Amor cego, faca amolada


Eram sete horas da manhã quando acordou. Saiu da cama lentamente. Arrastada,
colocou primeiro o pé esquerdo no piso frio. Se livrou do fino lençol que estava
enrolado em seu corpo nu. Ainda sonolenta cambaleou até o banheiro. Fechou a porta
enquanto olhava-se no espelho do armarinho.

Ela estava viva. Incandescentemente viva.

Entrou no box e ligou a ducha, O banho a despertaria, pensou, enquanto a água quente
caia em seus ombros, seios, barriga. Descia como rio, deslizava suas pernas e voltava
pro ralo. Mexeu as pontas dos dedões do pé. Unhas limpas. Sem cor, sóbrias.

Como deveria ser a vida.

Molhou a cabeça, ás vezes no banho tinha vontade de ter cabelo comprido. Fechou os
olhos e deixou que a água limpasse seu rosto.

Talvez a alma e revigorasse a energia.

Lembrou que não tinha café da manhã em casa enquanto despejava na palma da mão
uma porção de shampoo. Pensar no café da manhã a conectou com Jairo que ainda
dormia um sono profundo em sua cama. Por um momento teve vontade de sentar-se no
chão, abraçar as pernas e ficar embaixo do chuveiro até ele ir embora.

Sentia-se confusa e tranquila.

Desligou a ducha, abriu a porta do boxe, entrou no roupão verde desbotado que há
dois anos antes ela tinha roubado em um hotel quando estava em Salvador. Ela achava
aquele roupão horroroso, estava gasto, mas não conseguia desapegar daquele pedaço de
pano. Tantas lembranças num único pedaço de pano!

Escovou os dentes:

- Preciso ir ao dentista!, disse ao seu reflexo enquanto examinava detalhatamente os dentes e a boca.

Ir ao dentista. Mais uma das tantas coisas que lhe fugiam e da qual se esquecia.

Decidiu não secar o cabelo, decidiu faltar ao trabalho ir à padaria. E então, compraria o café da
manhã. Pediria para Jairo ficar. Cozinharia o almoço, assistiriam a um programa ruim
na TV, no meio da tarde. E então... e depois desse ritual gostoso, ela... Ela o mataria.

Cuspiu a pasta de dente. Levantou a cabeça e encontrou seus olhos no espelho. Ardiam.

“Quanta bobagem!” Tentou sorrir pra si mesmo. Sua alma doía. Voltou pro quarto, Jairo ainda
dormia de bruços, pernas abertas, mão esquerda abraçando o travesseiro. Um ronco que
lembrava um apito.

Sentou-se na cama em cima da perna direita, olhou para Jairo, para aquele corpo... Olhou toda aquela doença que a fazia feliz.


quarta-feira, 25 de julho de 2012

Capítulo 9: Bullshit!

Terça feira, nove da noite, numa galeria de uma rua arborizada da Vila Madalena, Dora segurava desanimadamente uma taça de champagne. Era a vernissage de um fotógrafo, desses moderninhos, cheio de pose e dinheiro, porque na opinião de Dora aquelas fotos não tinham nada de artístico.

Suspirou sentindo preguiça daquela gente toda sorrindo pelo salão. Não tinha hora para ir embora e já estava cansada no início da semana. Olhou o relógio no celular, mas o ponteiro havia andado em dois minutos. O tempo se arrastava. Era noite de lua cheia e ela só queria estar na rua. Queria sair andando sem rumo, olhando vitrines de lojas fechadas, tomar um café no Frans, logo ali na esquina antes de entrar no metrô. Encheu mais uma vez o copo. "Vai ficar altinha", pensou, "e depois cochilar no metrô".

Ela estava de costas para a porta, olhando uma foto gigante. No destaque, uma unha pintada de vermelho. Do mesmo vermelho que ela também gostava de pintar as unhas. A foto toda em preto e branco e aquela unha em vermelho nítido. O título? “Sangue". Senhoras e senhores, disse a si mesma, eis aqui uma grande bosta! Sorriu, sem perceber quando Jairo entrara na galeria.

Dora fora a primeira pessoa que ele viu. Dora, num vestido preto curtíssimo que realçava as belas formas do seu corpo. Os cabelos também curtos estavam seguros em uma faixa colorida. Segurava uma taça e sua cabeça pendia para o lado esquerdo. Ao vê-la assim ele imaginou que ela estivesse criticando a foto.

Jairo, de terno e gravata afrouxada, olhava Dora sem que ela o tivesse notado ali. Ele achava aquele emprego, aquela galeria medonha. Coisa de gente rica e sem talento. Se aproximou devagar e assoprou sua nuca como sempre fizera. Como nos velhos tempos. Dora sentiu um arrepio percorrer toda sua coluna. Arqueou os ombros e, por alguns segundos, fechou os olhos. Aquela sensação, aquele sopro na nuca... aquilo era coisa de... E não podendo mais pensar virou-se bruscamente, fungindo daquele sopro doce que durou uma eternidade e seus olhos encontraram os olhos de Jairo.

- Jairo! que susto! Que cê ta fazendo aqui?
- Oi amor! que saudades! Disse ele no seu costumeiro tom melado.

Ela começou a andar pela galeria, sem rumo, enquanto Jairo permanecia ao seu lado. Encheu mais uma vez a taça. Respirou fundo, mas as pernas iam bambas. O coração ia saltar a qualquer minuto, ela se sentia zonza e uma dor súbita, embaixo do braço direito. Era um infarto. Ela iria morrer ali, naquele momento, ela bem sabia! Dora era assim. Gostava de exagerar.

- O que você quer Jairo? Eu estou trabalhando, que você tá fazendo aqui?
- Interessante esse seu trabalho. Você bebe, olhas umas fotos horrorosas...
- Me respeite!
- Ok, Dora. Eu não vim aqui pra discutir. Eu... Olha só... eu estou morrendo de saudades... eu me arrependo... cometi um erro... Dora eu...

Era toda aquela ladainha tão conhecida por ela! Aquela coisa que nunca acabava!

- Jairo eu não vou falar disso com você, me esquece! Enquanto os lábios diziam isso, sua cabeça imaginava poder dizer algo muito diferente. Algo como “Jairo, me leva pra cama agora”...

Cobras, malditas serpentes em sua cabeça.

- Dora por favor, uma chance, uma horinha apenas, deixa eu te levar embora, me escuta...Eu quero você de novo, deixa eu voltar hein, meu amor?

Ela ficou em silêncio. Colocou a taça em cima do balcão, saiu pela porta e deixou Jairo sozinho. Atravessou o salão rapidamente com passos largos e firmes, foi em direção ao seu chefe que conversava com o fotógrafo hipster.

Que tipinho, ela pensou olhando o rapaz de cima abaixo enquanto puxava o braço do seu chefe e pedia licença.

-Armando, preciso ir embora agora. Tudo bem? Ele olhou por cima dos ombros nus de Dora, viu Jairo em pé na porta que acenou.

- Jairo voltou é? Ódio, essa mania de não ficar calada e chorar suas dores pro mundo! - Eu só preciso conversar com ele, sei o que eu estou fazendo.

- Hum... veja lá hein Dora! Tenho vontade de não te liberar só pra você não ir ao encontro desse canalha.

Ódio. Ódio. Ódio. Quem aquele baixinho com aqueles óculos de aro vermelho pensava que era para se intrometer tanto assim na sua vida. Armando vai tomar no cu! Quisera poder ter dito em alto e bom tom!

- Armando, tudo bem. Eu sei o que estou fazendo... - Tá bem. Boa sorte então.... amanhã te vejo às dez!

- Ok, obrigada.

Atravessou novamente o salão. Jairo a encarava. Seu coração estava ponto de sair pela boca. Que homem lindo meus Deus! Aquele terno impecável, aquela gravata propositalmente frouxa. os cabelos alinhados e a toda aquela elegância natural de Jairo.

Saíram.

Em silêncio atravessaram a rua. Ela queria dizer mil coisas, vomitar tudo em cima dele, queria deixar claro como ela se sentia, todo o mal que lhe causara, queria dizer que inclusive era culpa dele aquele rapaz ter morrido na frente dela. Culpa dele seu final de semana ter sido tão pesado. Jairo, a praga do mundo!

Entrou no carro, inclinou a cabeça para puxar o cinto, quando voltou seus lábios encontraram o dele. O encaixe perfeito. A boca gelada e carnuda de Jairo, sua língua firme, a mão que segurava com força sua nuca. Não teve mais tempo de pensar. Relaxou e ficou entregue àquela criatura sedutora dentro daquele carro.

Como uma heroína dos contos da Série Sabrina, Dora se entregou ao beijo. Ao beijo de Jairo. Ao beijo longo, demorado e macio de Jairo. Ah! Aqueles lábios... Tinham sabor de pecado. Tinham cheiro de erro. Tinham o prenúncio de que algo muito ruim estava novamente para acontecer.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Capítulo 8: "Back to Black"



Quando acordou estava de volta ao restaurante sentada numa cadeira em outra mesa.
Teve que abrir os olhos com cuidado. Não se lembrava de muita coisa. Sentiu que estava com o rosto molhado e as mãos geladas. Aos poucos a visão foi-se acostumando com o cenário. Ajeitou-se. Arrumou as costas e com a mão direita apoiada na cadeira empurrou o quadril para cima.
Foi levantando devagar a cabeça até que seus olhos encontraram os de … Pablo? Assustado, ele estava segurando uma garrafa com água pela metade e a outra deveria estar em seu rosto, pois foi percebendo aos poucos a roupa molhada. Dora concluiu, com um louca vontade de rir e chorar ao mesmo tempo, como estava feliz de ver seu amigo.
-Dora, que susto! Gente tô tremendo...
- Que bom que você tá aqui! Onde você estava fiquei preocupada!
- Eu tava ali, eu vi quando você saiu como uma louca do restaurante, mas quando me aproximei a senhorita tinha desmaiado...
Então ela se lembrou, olhou ao redor a confusão ainda continuava, o resgate havia chegado e os paramédicos colocavam o corpo do rapaz dentro do furgão.
-Vamos embora? – ela suplicou.
-Você está bem? Por que você foi até lá?
-Pensei que era você!
- Ai Dora! Pelo amor, criatura!!!!!
Pablo se benzeu. Pagaram a conta, saíram no meio da confusão, ela não quis mais olhar, não quis mais ver o sangue, queria esquecer o barulho e aquele episódio. Mas sabia que seria impossível. Pablo ainda se despediu do tal rapaz que o fez “morrer” por alguns segundos, marcando alguma coisa pra mais tarde.
- Não sei como você ainda consegue pensar em sexo - disse Dora quando eles entraram no carro.
Pablo suspirou dando a partida.
- Foi outra pessoa quem morreu, não eu queridinha! E como se diz por ai: antes ele do que eu.
O carro dobrou a esquina, Pablo ligou o som. Dora sabia que esse jeito grosseiro do amigo era só uma forma dele lidar com o que acabaram de vivenciar, tinha esse jeito meio seco, um tanto insensível, mas no fundo ela sabia que ele estava se corroendo, morrendo de medo assim como ela. Prova disso era o volume da música que ele acaba de colocar no carro, deixando claro que não queria mais conversa. A voz marcante de Amy Winehouse negando a “Rehab” quebrou o silêncio que caiu sobre os dois.
Dora não conseguia esquecer o que vira. De toda a cena o que mais lhe chamara a atenção fora aqueles olhos inexpressivos, estáticos como duas bolas de vidro. Não havia mais brilho. As pontas dos dedos da mão estavam roxas, assim como a boca. E olheiras profundas contornavam os olhos castanhos claro do morto. A vida se esvaira tão rápido. A morte tomara aquele corpo para si em tão poucos segundos. E tão rapidamente aquela pessoa era apenas um vazio. Um buraco negro escuro de dor e saudade que sugaria os que naquele episódio estivessem reunidos.
Era isso, então. Era assim a morte, esse era seu rosto. Essa coisa vazia, sem cor, esse nada em forma de mãos, braços, tronco, pernas, olhos. Que triste! repetia pra si mesma, que triste...
Para aquele rapaz estendido no asfalto o jogo tinha terminado, ele tinha perdido. Fim da linha.
Game over. Ela susurrou. Game Over. E pensou na vida, em sua vida, como lhe doía, como era pesado ser ela naquele momento, como estava sendo difícil lidar com aquele buraco que Jairo deixara, aquele nada que viver se tornara. Pensou que talvez o rapaz morto aproveitasse mais que ela, que fosse mais feliz que ela, que com certeza dava mais valor à vida do que ela.
E pensar nisso tudo, estar diante da morte e até desmaiar, tudo isso tinha mexido demais com ela. Sentiu uma ânsia subindo a garganta. Estava angustiada, um nó na garganta. Não pode segurar quando as lágrimas vieram fortes, quebrando as barreiras, vindo do fundo. E então a menina chorou.
Levou as mãos ao rosto, ombros tremiam. Soluços. Assustado, Pablo parou o carro, diminuiu o volume do som.
-Dora, Dora, Dora! Que foi minha querida? Hein... que foi?
Ela tentou segurar o choro, respirar. Estava difícil, ela quis dizer que estava difícil segurar a onda, agüentar a barra, continuar.
-Pablo... (soluçou) Pablo... Eu... Eu não... Eu não quero morrer!!!!
E desabou em soluços mais uma vez. Pablo abraçou a amiga.
-Que bobagem, você não vai morrer, ninguém aqui vai!
Ela passou as costas das mãos nos olhos, por um momento se sentiu fraca, clichê e ridícula. Menininha!
Pablo se afastou soltou-a de seus braços.
- Eu tive uma idéia, hoje vamos passar a noite juntos. Vamos pra casa, ver um filme, sei lá qual
quer coisa... Posso chamar uns amigos... a gente se distrai.
Ela não queria, queria ligar pra Jairo. Queria estar com ele outra vez.
- Tudo bem- ela disse baixo- Tudo bem.
Pablo ligou o carro mais uma vez, Dora suspirou. Ironicamente, dessas coisas que só acontecem com ela, no som do carro a voz de Amy Winehouse saia rouca: (...) “We only said goodbye with words, I died a hundred times” (...).

Naquela tarde, indo pela Doutor Arnaldo, cabeça encostada no vidro fechado do carro, os olhos encontraram o cemitério, a morada da morte. Encontraram ainda o Hospital Emílio Ribas. Voltando a pensar naquele rapaz, para o luto que ela quem nem sequer o conhecia sentia, ela retomava seu pensamento anterior. Primário. Ela sobreviveria.
Melhor, ela decidiu, viveria. Reinventaria outra vida antes que a morte viesse lhe atormentar com o vazio profundo.Ela se reinventaria.

terça-feira, 6 de março de 2012

Capítulo 7: Que não seja Pablo

Tudo aconteceu rápido demais. Mas dentro de sua cabeça uma eternidade pesou-lhe os ombros.

Ainda ouvia Pablo dizer sobre o rapaz de ontem, mas não prestou atenção para onde seu amigo tinha ido. De repente foi puxada de dentro das trevas na qual se encontrava. Aquele disparo havia sido um tiro, sem dúvida! e seu amigo não estava ali.

Uma confusão se iniciou dentro do restaurante, as pessoas se levantaram e tumultuaram a porta de entrada. Dora se levantou sentindo um peso na nuca, meio zonza um mistura de cerveja, maconha e medo. Onde estaria Pablo? Ela rezava e pedia mentalmente que não fosse ele... Que não fosse ele.

Caminhou até a porta esbarrando, empurrando todo mundo. Na rua a confusão ainda era maior, uma multidão fazia um círculo em volta de um corpo estendido.

Era a morte. Era a morte que vinha lhe beijar a face naquela tarde de sábado e sol quente. Beijava-lhe naquele restaurante onde a vida pulsava. Vinha intrusa e impiedosa, reinando sobre todos.

Enquanto seu coração disparava, á medida em que ela abria
espaço na multidão para chegar mais perto do cadáver, Dora ia com o pensamento atinado, quase em marcha, quase em voz alta: “Deus não deixe que seja Pablo”, “não deixe que seja Pablo”, “Deus!” .

A primeira coisa que notou foi a poça de sangue que escorria do corpo estendido no asfalto quente. Diferente de como via em filmes ou lia em livro o líquido vermelho não escorria, mas lentamente ia formando um desenho qualquer. Descia grosso e parava em uma pocinha que rapidamente secava e voltava a ficar úmida. Ela levou a mão à boca, o peito doeu. Olhou
bem no rosto do morto.

Segurou um grito, cambaleou. Quase caiu.

Se afastou empurrando com o cotovelo as pessoas que falavam ao celular, que ligavam pra emergência. Ouvia alguém dizer que tinha sido assalto, outro dizia que foi acerto de contas. Ninguém vira nada. Tudo havia sido muito rápido. Um rapaz tão bonito e jovem, dizia uma outra voz...

Dora sentiu o olhar embaçado, as vistas escuras. Só sentiu-se deslizando para dentro de uma escuridão gelatinosa. Era como pisar em areia movediça. Todo o asfalto derretia sob aquele sol, aquele sangue que estancava no asfalto. Ela se dava conta enquanto era engolida por garras negras que a
puxavam para o limbo, que a morte estava a espreita, que era o fim da linha.

Tentou se agarrar em alguma coisa, não havia nada, era o vazio.

Sua garganta estava seca, seu peito doía e suas pernas não respondiam as ordens do cérebro.

E a menina que não tinha andado quase nada, que ainda mal tinha se afastado do morto, desmaiou. Inconsciente, como quem dança um passo macabro, caiu a poucos metros do corpo pálido e sem vida do jovem assassinado. Dora desmaiara de braços dados com a morte.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Capítulo 6: Sábado, dia de morrer


MusicPlaylist
Music Playlist at MixPod.com
(Leia ouvindo Jose Gonzales, Down the lie, clicando acima)

Ficar sozinha naquele sábado seria o mais lento, o mais torturante tipo de morte. Não depois daquele telefonema. Não depois de tantos sábados sem Jairo. Não depois de ser ela com ela mesma fim de semana após fim de semana.
Não essa morte tranqüilizadora, suave, que em questão de segundos tudo acaba e você vira nada.
Um outro tipo. Uma morte maldita que antes do ato final te obriga a pensar em tudo, em olhar pra sua vida ali nos seus pés e ter que cutucar cada ferida, esmiuçar a dor.
Ela não podia ter outro sábado doloroso. Não deveria se sentir tão atingida assim.
Era nessas coisas que ela pensava enquanto Pablo estava na fila do banheiro no restaurante lotado de gente aparentemente feliz. Tinha sido ótimo ligar pro seu amigo animado. Seu amigo de alma feminina que a entendia tanto. E lá estavam agora. Na fila. Modernos, descolados, puro clichês. Eram assim. Estavam assim. Curtindo a vida.
- Essa fila me dá um pouco de preguiça, disse Pablo enquanto se sentava de frente pra ela e de costas pra porta.
Dora via sobre o ombro dele jovens em pé com copos de cerveja na mão, na porta do restaurante. Eles estavam contra o sol. E a luz estava linda.
- Eu gosto bastante daqui... murmurou Dora e deu de ombros com um meio sorriso. Acho bonito.
- A figuração tá ótima! Pablo riu enquanto enchia seu copo de cerveja.
Eram quatro e meia da tarde eles estavam almoçando na Benedito Calixto, a praça que Dora adorava ir com o Pablo. Na companhia dele a praça tinha outro sentindo.
Eles haviam passado a manhã na piscina, bebendo cerveja, falando sobre coisa nenhuma. Pablo não perguntou nada, quis deixar a amiga a vontade e ela sentiu a vontade de não tocar no assunto Jairo.
Pelo menos não naquele momento. Não ali.
_ Jairo me ligou. Dora disse bebericando a cerveja e empurrando o guardanapo na mesa com a outra mão.
- E aí? O que ele queria?
-Disse que ta com saudade, que quer me ver.
-Afff! que escroto! Desencana né amiga! Nada a ver... você não precisa disso...
- Queridinha! Disseram os dois ao mesmo tempo em voz alta.
- O cara é um escroto Dorinha!
- Eu sei... Fiquei mexida... eu ainda gosto.. sei lá...
- Ele é um egoísta! Ele só tá pensando nele, ele até pode estar com saudade, mas ele não te ama mais, nunca amou,Vocês vãos e ver... transar e ai? Ai ele vai sumir
deixa morrer isso meo!
-Eu sei... enfim... sei lá Pablo to estranha, infeliz... me sinto triste sabe... sei lá... as vezes parece que eu perdi minha inocência, minha fé...
- Não viaja! O mundo é lindo e sombrio... Por Favor né Dora... sai dessa, canaliza pra outra coisa...acho que você ta fumando muito, amiga.
- O quê? maconha? Nem tô.
-Não! só hoje na piscina nós fumamos três... e ainda tem o digestivo.
Dora riu, Pablo também. E era isso que Dora precisava naquele sábado. Precisava ficar "desligada", relaxar esquecer um pouco a semana. E Pablo? Pablo tinha o dom de faze-la rir.
- Amiga! Acabei de ver meu peguete de ontem!, exclamou alto Pablo, enquanto a menina continuava absorta em si mesma.
Sim... Outra semana. “Vem outra novinha aí!”, dizia mentalmente ela para si, se enganando, fingindo que tinha esperança numa nova semana e que naquela tudo seria diferente,
Fingia que algo aconteceria naquele inércia do mundo. E então como se fosse uma personagem de teatro fingia acreditar em um novo dia.
Afinal, não era isso que todo mundo fazia? Era! E ela conseguiria repetir a peça toda novamente? Não sabia... mas ao menos, naquele final de sábado de tarde, por algumas horas, ela esqueceria, ela esqueceria aquele enredo ruim, aquele livro de quinta que era sua vida.
Ela viveria naquele final de tarde.
Continuaria. E como se esses pensamentos todos lhe tomassem por inteiro ela não fora capaz de ver a cena logo ali à sua frente. Mergulhada na sua tristeza, mergulhada no seu mundo estático Dora só percebeu que algo acontecia quando ouviu aquele som estridente, aquele som que lhe lembrava... Um disparo?

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Capítulo 5: Pablo

Quinto capítulo: Pablo.

As Luzes verdes fluorescentes do microondas na cozinha avisavam Pablo que eram três e cinquenta da manhã. Ele abriu a geladeira meio sem saber porque. Cambaleando avistou um pedaço de pizza de horas atrás. Se apoiou na porta aberta e deu a primeira mordida ali mesmo, em pé, bêbado na cozinha. Pegou a bisnaga de ketchup, fechou a geladeira, atravessou o pequeno corredor e se sentou no chão da sala. Ligou a TV só pra ouvir um barulho qualquer. O dia logo chegaria. E seria sábado. Ele dormiria até tarde, acordaria de ressaca, almoçaria em casa mesmo, perderia horas deitado no sofá até a noite começar de novo.

- Sábado, pensou ele suspirando e em sendo sábado ele então iria dormir.
-
Por isso quando começou ao ouvir Coldplay a cantar “Viva la Vida”, ele viu Dora toda de azul, Dora num estranho vestido, Dora gesticulando. Eles estavam numa festa e a música tocava alta. Coldplay agora gritava na vitrola moderna enquanto Dora movia os lábios em fala, mas cujas palavras eram impossíveis de serem ouvidas.

Era a música deles! A música que os dois adoravam e selara pra sempre aquela amizade quatro anos atrás. No sono que tinha acordado a música não tinha fim. Então meio feliz, meio incomodado e uma certa angústia querendo tomar conta de todo o cenário criado por sua mente debilmente bêbada, ele abriu os olhos.

Estava na sala, deitado no tapete, TV ligada, o sol entrava sem piedade pela porta da sacada aberta, ele ainda ouvia a música só que ainda mais alta.

Ainda atordoado, com dor de cabeça, se deu conta finalmente que não era um sonho, não era um sono, nem mesmo uma lembrança de Dora, mas seu celular que tocava. Aquela música... Era Dora ligando!

Viva la Vida, era Dora chamando.

Ele fez uma careta, sentia a boca seca e amarga, não queria atender. Dormir, era o que ele deveria fazer. Mas era aquele tipo de ligação que não dava pra não atender por mais cansado que se esteja, por mais vontade de ir pra cama, por mais desejo louco de fechar tudo e só acordar as quatro da tarde. Era Dora sim, Dora sua melhor amiga, e ele, ele tinha que atender porque se havia algo que se mantinha igual era sua lealdade a ela. Fora leal e sempre o seria.

Atendeu, voz fraca.

- Ow tava dormindo?

-Tava deitado - mentiu.

- Que vai fazer?

- Nada, acho.

- Ta um dia lindo! pensei em ir aí, tomar sol com você e depois irmos almoçar em algum lugar... beber uma coisa qualquer... Vamos?

- Hummm..., fingiu dúvida. Tá. Pode ser... A que horas? Cê já tá vindo?

- Sim, pensei em ir agora. Passar no mercado, levar alguma coisa pra gente beber e comer na piscina...

Dora soara estranha. Olhou o relógio, nove e dez da manhã. Ela não podia estar animada assim. Dora não era assim.

- Tá bom, disse levantando e fazendo uma careta para si mesmo. Venha!

- Jairo me ligou ontem, disse ela de sopetão e o tom mudou. Ele demorou alguns segundos para assimilar tudo. O que afinal ela queria com aquele telefonema?

- E?

- Eu não quero ficar sozinha...

Ele percebeu que ela engoliu um soluço, não devia nem ter dormido. Ela ficou em silêncio.

- Amiga...

Em frente ao espelho do banheiro, ele fitava sua cara amassada. Que olheiras! pensou colocando o óculos escuros que estava em cima do cesto de roupas sujas. E como se os óculos lhe dessem certa força para esconder os porquês das olheiras escuras e da bebida descontrolada ele falou com convicção:

- Amiga, vem pra cá logo! A gente conversa. Vamos ter um ótimo dia juntos!